Plenária Regional do PNEP

Intervenção/Plenária Regional do PNEP – 13/03/2008
A COR DAS FORMIGAS

Esta intervenção teve contornos pouco convencionais, sobretudo na parte inicial onde procurei provocar o auditório, prendendo a sua atenção, à semelhança do que faço com os alunos.
Manifestei a minha indignação pelo excesso de trabalho, pela dificuldade em sermos professores nos dias de hoje, atolados em papéis, reuniões, grelhas de avaliações, planos, projectos, decretos, formações, reflexões, sessões plenárias… E como se tal não bastasse, o próprio auditório estava infestado de formigas! Bichinhos pequenos, quase insignificantes, mas que causam grandes incómodos a quem está comodamente sentado. Por isso todo o auditório foi convidado a levantar-se para inspeccionar o seu lugar e tentar descobrir o trilho das formigas que geralmente se deslocam em carreiro. De vez em quando há uma que se desvia do percurso e segue noutra direcção, exposta aos olhares de toda a gente, como bem ilustra a canção de Zeca Afonso “A formiga no carreiro”, cujo refrão incitei a audiência a cantar.
Depois deste desabafo, falei da minha paixão pelos livros, pela poesia, pelas histórias que me fazem pensar e questionar o mundo. Falei também desta excelente formação que é O Programa Nacional de Ensino do Português e que surgiu, em meu entender, numa época de questionação dos velhos paradigmas de formação dos professores, procurando reconciliar teoria e prática pedagógicas, tantas vezes desavindas.
Penso que o trabalho dos professores deve ser alicerçado numa formação teórica permanente que sustente um pensar reflexivo, retrospectivo e prospectivo, e esta formação tem despoletado múltiplas reflexões e incentivado uma criatividade crescente, com repercussões positivas no nosso desempenho profissional. O grupo de formandos é fantástico. Aprendemos em conjunto, partilhamos preocupações, auxiliamo-nos mutuamente, divertimo-nos imenso e aprendemos bastante, porque a nossa Alexandra Subtil é exigente e sem dirigismo, exige que de nós saia o que de melhor pudermos dar.
É interessante verificar que nesta formação nos sentimos simultaneamente autores e leitores da nossa actuação pedagógica. As nossas reflexões obrigam a uma tomada de consciência de sentimentos, dúvidas, inquietações e convicções que são frequentemente postas em causa e nos impelem para práticas inovadoras. E mesmo que não exista nada de verdadeiramente novo, é com agrado que constatamos que muitas das actividades que desenvolvíamos com os alunos, de uma forma mais ou menos intuitiva, têm um suporte teórico que depois de conhecido, imprime uma nova força e intencionalidade, tornando possível a capacidade de ir mais longe e mais profundo.
De seguida apresentámos em Power Point a história do Joãozinho que critica a escola da obrigação, do tédio, do silêncio, da solidão, da escassez da criatividade, da “formiguinha no carreiro”, da “pinoquização” cultural denunciada por Rubem Alves, que transforma meninos de carne e osso em bonecos de madeira, devidamente formatados.
O ensino da língua materna no 1º ciclo, deve em nossa opinião, ser uma aventura inesquecível para as crianças e um desafio interessante para os professores. Descobrir o prazer de ler e de escrever é fundamental para as crianças que iniciam a escolaridade obrigatória e se os professores não gostarem das matérias que leccionam, não vão conseguir passar para os alunos entusiasmo e a alegria de aprender.
Um professor ensina mais aquilo que é, do que aquilo que ensina.
E a este propósito vou contar-vos uma história. A história de um menino que se chamava Joãozinho, mas podia ser António, Manuel, ou qualquer outro nome do vosso agrado.

Joãozinho era um menino pequeno. Mas já sabia fazer muitas coisas. Aprendera algumas com o pai e com a mãe, outras com amigos e muitas outras aprendera sozinho, no pátio de sua casa, no seu quarto, na copa da sua árvore preferida…

Ele estava muito entusiasmado, pois iria iniciar mais uma nova aventura: IR PARA A ESCOLA!

Quando chegou à escola, achou-a enorme. Com a pequena mochila às costas, olhava para tudo com assombro e curiosidade: “Ena, quanta coisa bonita farei aqui”, pensava Joãozinho.

No 1º dia de aulas a professora anunciou:

- Hoje vamos fazer um desenho!

Joãozinho vibrou. Ele adorava desenhar. Apressadamente, pegou nos lápis de cor para começar. Porém, para surpresa sua, a professora não deixou que ninguém começasse o desenho sem ela dizer o que deveriam fazer.

- Muito bem, disse a professora. Agora que todos têm a folha na mesa, e todos
estão muito bem sentadinhos, podemos começar. Vamos desenhar uma árvore!

Joãozinho entusiasmou-se novamente. Pensou nas árvores que havia no seu quintal, cheiinhas de flores e na casinha que o seu pai tinha construído no cimo da árvore, onde ele gostava tanto de brincar, mas os seus pensamentos foram interrompidos pela voz da professora:

- Prestem atenção! Olhem bem para esta árvore que a professora desenhou. Observem as cores… De que cor é o tronco? E a copa?

Joãozinho olhou para a árvore da professora. Não era feia, não senhora, mas a sua árvore era bem mais bonita…

Calado, pegou no lápis e desenhou a árvore da professora: tronco castanho e copa verde.

Num outro dia, a professora anunciou que teriam uma surpresa! O que seria?

A professora apresentou para as crianças uma barra de argila e anunciou:

- Hoje vamos modelar!

Joãozinho adorou a ideia, pois gostava e sabia modelar. Perto de sua casa havia um riacho e no barranco havia muito barro preto. Ele e os seus irmãos faziam coisas lindas com aquele barro.

Amassando entusiasmado o seu pedaço de barro, Joãozinho ia pensando no que iria inventar. Mas o seu entusiasmo durou pouco. A professora falou:

- Vamos fazer um cinzeiro para presentear o pai. Olhem para o cinzeiro que eu trouxe. Hoje vamos modelá-lo e depois de secar vamos pintá-lo. O vosso pai vai adorar. Vai ficar lindo!...

Joãozinho, muito calado, começou a modelar o seu cinzeiro. Não gostou do cinzeiro, e o pior, o seu pai nem fumava! Que graça teria oferecer-lhe um cinzeiro?

Joãozinho que antes adorava os seus desenhos, as suas modelagens, as suas histórias de inventar teatro, mudou muito. Já não se entusiasmava com as «surpresas» apresentadas pela professora. Aprendeu a esperar e a fazer as coisas iguais às da professora. E tirava boas notas.

Mas um dia a família do Joãozinho mudou de cidade e o menino teve que ir para outra escola.

A nova professora contava histórias e pedia aos alunos que a ajudassem a contar ou a dramatizar a história. Joãozinho só respondia o que lhe perguntavam.

Após a história a professora falou:

- Vamos desenhar o que mais gostamos da história?

Que bom, pensou Joãozinho, e ficou esperando que a professora dissesse o que deveriam desenhar.

Mas a professora não disse. Ela andava pela sala e conversava com todos os meninos. Chegando perto do Joãozinho e, vendo que ele ainda não tinha começado, perguntou:

- Não gostas de desenhar?

- Sim, senhora mas, o que devo fazer?

- Aquilo que quiseres. Tu é que sabes o que gostaste mais de ouvir na história. E se não gostaste de nada, podes desenhar o que quiseres.

- Mas como devo fazer?... Que cores devo usar?

- As cores que achares que ficam melhor. Tu é que és o dono do desenho. Todos temos um jeito especial de ver as coisas. Que graça teria se todos pensássemos da mesma maneira e fizéssemos tudo igual?...

Joãozinho, muito calado, voltou-se para sua folha e começou o «seu» desenho… «uma árvore de tronco castanho e uma copa verde…»
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FEIL, Iselda (1983). Alfabetização. Um desafio para um novo tempo. 3º ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes.

Esta simples história constitui um excelente “material” de reflexão. A nenhum professor/ educador ela é indiferente. É inquestionável que as crianças precisam de modelos, mas necessitam igualmente de afectos, de terem um elevado nível de auto-estima, de terem espaço para exprimir as suas vivências, anseios, medos opiniões, interesses expectativas e frustrações.
A vida familiar e afectiva dos alunos desta faixa etária, assumem capital importância no processo ensino – aprendizagem e não podem ser negligenciados. Não podemos acreditar que sejam meninos capazes de fazer desaparecer, num passe de mágica, a agitação de pensamentos e sentimentos que compõem a sua vida emocional, para logo se disporem a aprender. As emoções, os afectos, tão esquecidos numa era racional, são efectivamente os motores de toda a acção. Na esteira de variadíssimos autores, concordamos que, no essencial, ensinar e aprender, são processos afectivos.
A escola é um palco de encontros e interacções. E receber afecto na escola é tão importante como cumprir o programa. Sem esquecer o lado técnico dos conteúdos escolares, o ideal seria transformá-los em experiências de enriquecimento pessoal para quem ensina e aprende.
A infância deve ser encarada como um momento onde se vê, se pensa e se sente o mundo, de modo próprio. Mas ousemos perguntar:
Vivem as crianças do mundo de hoje um tempo de infância que respeita o sonho, a fantasia, a ludicidade como condição de aprendizagem fundacional do seu modo de inteligibilidade?
Onde exerce a criança a sua liberdade, a sua autonomia, a sua cidadania epistemológica?
A escola actual, heterogénea e multicultural é frequentemente a escola da violência, do insucesso e da disrupção comportamental. Face a estes momentos de instabilidade e desorientação, não falta quem postule o regresso a uma escola autoritária, selectiva e segregadora, enquanto outros defendem que a solução está no afecto, na educação para os valores, para a cidadania, co-responsabilidade e participação. É por acreditarmos nesta solução que o nosso trabalho com os alunos não admite divórcio entre a aprendizagem social, emocional e intelectual.
Trabalhamos com projectos de leitura que são verdadeiros espaços de escuta da vida afectiva das crianças, que promovem a aprendizagem da língua materna de uma forma lúdica que incentiva condutas assertivas do ponto de vista social, emocional e intelectual.
Interdisciplinaridade, solidariedade, criatividade, jogos de expressão oral, escrita, dramática, musical e plástica, são uma constante em todos os projectos que pretendo partilhar convosco.
Termino regressando às formigas, fazendo eco das palavras de Fernando Savater que defende que como indivíduos e como cidadãos, temos o direito de ver tudo da cor da maior parte das formigas (muito preto...), mas enquanto educadores, temos que ser optimistas. Educar é acreditar na perfectibilidade humana.
As humildes formigas são construtoras de grandes impérios e são um belíssimo exemplo do trabalho cooperativo. As formigas não falam, mas colaboram. Do bom e do mau tempo, tiram vantagem. O tempo da formiga é tempo de lição.

Formanda: Maria Helena Magalhães

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